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O Livro Vermelho de Jung

Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos. O suíço Carl Gustav Jung tinha 38 anos em 1913. Psicanalista, tornara-se discípulo dileto do neurologista austríaco Sigmund Freud. Isto, em sua vida, significava o melhor. O pior, como a Primeira Guerra Mundial, estava por vir. Antes que ela eclodisse, Jung viu o Mar do Norte transformar-se em torrentes de sangue. Mas algo ainda mais forte que esta visão o devastaria.

Um dia, Freud lhe negou um pedido. Jung quisera detalhes sobre a vida particular do mestre porque buscava elementos para interpretar um sonho que ele lhe relatara. Mas os olhos de Freud se encheram de desconfiança com a ousadia. Ao negar a informação, invocando sua autoridade neste relacionamento profissional que já durava seis anos, Freud imediatamente a perdeu diante de Jung.

O rompimento levou o suíço não aos livros, à bebida ou às drogas, mas aos brinquedos. Desde criança, além de ilustrar batalhas, Jung montara cidades com blocos e simulara terremotos para derrubá-las. Mas brincar de engenheiro mirim com dez anos de idade era diferente de fazer coisas idênticas com quase quarenta, ainda por cima durante os intervalos de sua clínica psiquiátrica. Ninguém, naquele início de século XX, assumiria viver as próprias fantasias tão intensamente, a menos que fosse louco. Jung jamais duvidou, por isso, enfrentar um surto psicótico ao recepcionar aquele arranjo de falas íntimas, nascido das brincadeiras de encaixe.

De 1914 a 1930, o psicanalista ouviu vozes e dialogou com elas na casa familiar de Sehestrasse, a rua do Lago na suíça Küssnacht. Artista plástico de talento, anotou em óleos as suas muitas inacreditáveis visões, todas as que ele jamais procurara afastar, em um processo que designou "imaginação ativa". Seres míticos, serpentes, mandalas e nuvens vermelhas, em representações soberbas, sobrepunham-se à cidade tranqüila. As páginas lembravam as de um códice medieval, e Jung misturava as línguas com que designava suas iluminações. O latim, o grego e o alemão vinham mesclados em uma escrita gótica que percorria as páginas como se um monge copista as tivesse produzido.

Jung organizou essas imaginações em uma edição intitulada O Livro Vermelho (Líber Novus), mantida no guarda-louça. Bastante conhecida por sua família, foi aberta ao público leitor apenas no segundo semestre do ano que passou. Os estudiosos aguardavam o livro havia muito tempo, já que ele definira o caminho particular de Jung dentro da ciência psicanalítica. Em 1957, na autobiografia Memórias, Sonhos e Reflexões, ele escreveu: "Os anos durante os quais me detive nessas imagens interiores constituíram a época mais importante da minha vida. Neles, todas as coisas essenciais se decidiram. Foi então que tudo teve início e os detalhes posteriores se tornaram apenas complementos e elucidações. Toda a minha atividade posterior consistiu em elaborar o que jorrava do inconsciente naqueles anos e que inicialmente me inundara. Era a matéria-prima para a obra de uma vida inteira".

No Brasil, o livro chega em meados do ano, pela editora Vozes, que incumbiu Carlos Orth, por oito meses, da tradução do extenso material em alemão. A introdução e as notas em inglês do organizador da obra, o historiador paquistanês Sonu Shamdasani, foram feitas na edição brasileira por Gustavo Barcellos e Gentil Titton. Walter Boechat acompanhou toda a tradução e fez a revisão técnica deste livro, a ser impresso em maio na gráfica da editora italiana Mondadori, seguindo as especificações da Norton original. Serão 404 páginas em formato de 29 cm x 39 cm, capa dura vermelha, autor, título e editora impressos em dourado.

O livro extraordinário estará brevemente entre nós, mas o que nos quererá dizer? Este é o mistério, este, o motivo de todos os estudos e reflexões que fervilham a partir de agora, cinco décadas após a morte do psicanalista, aos 85 anos, em 1961. A família não queria dar ao conhecimento público esta faceta que considerava controversa do pensador. Temia as polêmicas que sempre seguiram o antepassado, deixando-o muitas vezes só, e injustamente, naquele limbo habitado por médiuns, espíritas e charlatães. O tempo se encarregou de mudar suas impressões.

Carlos Byington, fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, mergulha nesses estudos com o encantamento de junguiano sem dúvidas acerca de sua filiação, ciente do preconceito em relação a este pensador que ainda habita os meios intelectuais. Para início de conversa, em sua casa, no bairro paulistano de Moema, Byington afasta de Jung a possibilidade de loucura.

"Muitas pinturas do livro são compostas segundo as representações que antecedem uma crise psicótica, por exemplo, as serpentes devorando o mundo", afirma o brasileiro. "Muitos dizem que Jung viveu um surto. Outros, que era psicótico. Muitos psicanalistas sustentam que ele rompeu com Freud porque era psicótico. Há opiniões variadas. Com minha experiência de vida e de psiquiatria clínica, digo que Jung nunca foi psicótico". Byington tem duas edições do Livro Vermelho para mostrar à reportagem, embora somente aquela de cem dólares, disponível por encomenda na internet, ele permita ser tocada. A outra, uma rara impressão de luxo, deve ser vista à distância, sobre a mesa de vidro.

Para Byington, a solidez do pensamento do intelectual está intacta, ele que morreu completamente lúcido e em idade avançada, pai de cinco filhos. O que Jung fez no livro foi expor imaginações, não alucinações, mas esta diferenciação, os psiquiatras da época não teriam sabido fazer. "Um erudito dentro da cultura alemã, Jung tinha uma capacidade de estudo enorme. Neste livro, ele cruza todas as culturas do mundo, antes de conceber a teoria do arquétipo", afirma o psicanalista.

Jung, lembra Byington, fora um entusiasmado por Freud desde a publicação de A Interpretação dos Sonhos, em 1900. Sua tese para a universidade, de 1902, em torno dos fenômenos ocultos, citava-a várias vezes. O esoterismo era um assunto da infância, nascido das vivências mediúnicas de uma prima. "Ele fora sempre ligado em parapsicologia, nos fenômenos irracionais, inexplicáveis, que a psique apresenta, e na tese explicava essas ocorrências como psicológicas", diz Byington. "Ele ligava a psique à transcendência. Daí para a vivência de deus percorreu um caminho direto. Essa função arquetípica dentro de nós é a mesma construída pela religião".

Havia entre ele e Freud um mundo de aproximações e também de discordâncias, nunca trabalhadas pelos dois em análise. Para Jung, por exemplo, ao contrário do que acreditava Freud, os sonhos não explicavam a consciência. Na autobiografia, o suíço escreveu: "Não tinha qualquer motivo para supor que as malícias da consciência se estendessem também aos processos naturais do inconsciente, pelo contrário. A experiência cotidiana me ensinou com que resistência encarniçada o inconsciente se opõe às tendências do consciente".

Jung acreditava que suas fantasias relatadas no livro tinham uma existência própria, que não se vinculavam a suas experiências familiares ou vivências sexuais. Ele também queria a religiosidade e os mitos como expressão natural da psique. Freud, um ateu formado dentro do positivismo, advogava a sexualidade como um dogma "contra a lama ocultista". Em oposição a isso, no Livro Vermelho, Jung fala de uma força primordial que contraria toda a erudição, a cultura, o racionalismo da ciência. "A edição é um encontro dessas duas forças dentro dele", diz Byington. "Uma burguesa, natural, que ele acha superficial, ridícula, medíocre, a cultura da erudição. Outra é uma força natural, profunda, independente, que está presente no sonho e na imaginação."

Para apreender as fantasias, conta Jung em suas memórias, ele partia muitas vezes da representação de uma descida até as profundezas cósmicas. Em uma dessas ocasiões, ao pé de um alto muro rochoso, viu duas figuras: a de um homem de barba branca e a de uma bela jovem. Abordou-os como se fossem reais e escutou o que lhe diziam. O idoso lhe contou ser Elias, o profeta. A moça, Salomé, era cega. Elias assegurou-lhe que ele e Salomé estavam ligados por toda a eternidade. Vivia com eles uma serpente negra que se inclinava na direção de Jung.

Em inúmeros relatos míticos, não desconhecidos pelo psicanalista, encontram-se exemplos desse par. Segundo a tradição gnóstica, por exemplo, Simão, o Mago, peregrinava com uma jovem, Helena, tirada de um bordel. Nos mitos, a serpente é muitas vezes a adversária do herói. Para Jung, a serpente anunciava o mito do herói. Salomé, cega, sem ver o sentido das coisas, representava o elemento erótico. Elias, o velho sábio, o conhecimento.

De Elias, nasceu uma das figuras centrais deste Livro Vermelho, Filemon, como Jung o denominou. Sua imagem aparecera primeiro em um sonho. Era um velho alado com chifres de touro. Trazia um feixe de quatro chaves, uma das quais estava em sua mão como se fosse abrir uma porta. As asas se assemelhavam às do pássaro martim-pescador. Dois dias depois de pintar essa representação, Jung viu um martim-pescador morto em seu jardim, à beira do lago. Em Filemon, o psicanalista detectou um conhecimento das coisas que se fazem por si mesmas, com vida própria, já que aquele ser não representava o eu. A partir desta descoberta, Jung adentrou na visão do inconsciente de todos, contra o inconsciente de um, aquele de Freud. O Livro Vermelho, sabe-se agora, é um livro de revoluções.

Revista Carta Capital, março de 2010.

Por Rosane Pavan

 



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